domingo, 13 de dezembro de 2009

Índios escritores resgatam sua história

Tradição é compartilhada com alunos nas escolas e registrada em livros

José Maria Mayrink

Os índios escritores estão recuperando a história dos povos indígenas que os não índios ignoram. Seus livros, numa coleção de narrativas para crianças e adultos que relembram as tradições das 250 nações hoje sobreviventes no Brasil, variam no estilo, mas perseguem todos o mesmo objetivo - restaurar na ficção de lendas, novelas e romances a sabedoria dos ancestrais. Pesquisas antropológicas e o registro de uma memória que vem sendo transmitida, de geração em geração, pela boca dos pajés, permitem resgatar a riqueza cultural de gente antes chamada de ignorante, selvagem, feia e preguiçosa.

Daniel Munduruku, ou Derpó, que em sua língua nativa significa Peixe Maluco, é um dos pioneiros desse esforço editorial. Ao lado de guerreiros como Marcos Terena, Kaká Werá, Aílton Krenak, Darlene Taukane, Eliane Potiguara e dezenas de outros autores que aparecem num catálogo literário organizado por entidades de defesa dos bens e direitos sociais dos índios, Daniel ajuda a espalhar a produção intelectual de seus parentes, pelo Brasil e no exterior.

UMA SAUDAÇÃO

A tradição e a cultura indígena também são compartilhadas com as crianças nas escolas. "Xibat?", pergunta o índio escritor-professor a uma turma de alunos da Escola Lourenço Castanho, no bairro do Ibirapuera, em São Paulo, na manhã de uma sexta-feira de novembro. Os meninos e meninas, de 8 a 10 anos, que no início do encontro tinham ouvido de Daniel uma saudação em língua indígena, logo traduzida para o português, não entenderam nada. Todos sorriam, esperando a tradução de mais essa palavra.

"Tudo bem? Tudo legal? Tudo joia? Tudo porreta?", traduziu o índio, despejando uma enxurrada de gírias para quebrar o gelo. Depois contou que, na aldeia, ninguém se cumprimenta com beijos e abraços, mas só com uma saudação simples como xibat, olhando nos olhos, porque, como dizem os ancestrais, "o olho é a única parte do corpo que não mente". Explicou que Munduruku quer dizer Formiga Guerreira ou Gigante, um nome que, com um significado desse, só pode dar orgulho a seu povo. A criançada prestou a maior atenção.

"Meu povo, que vive na floresta há séculos, entrou em contato com os não índios há uns 300 anos. Aprendeu a usar roupa quando lhe disseram que era pecado andar pelado, balançando os balangandãs. Aprendeu a comer alimentos, como o macarrão, que não faziam parte de sua tradição. Os índios comiam mandioca, anta, farinha, peixe. Os índios, que falavam sua língua tradicional, tiveram de aprender o português. Os povos indígenas, que falam 180 línguas nas diversas regiões do País, agora são bilíngues."

Não havia como não prestar atenção. O horário reservado para a palestra estourou, porque Daniel cativou os alunos. Fez provocações engraçadas, riu, gritou alto de assustar até os adultos, cantou, ensaiou passos de dança, pintou a cara com tinta de jenipapo e de urucum, pôs um cocar de chefe na cabeça e um colar de festa no pescoço. Assumiu a identidade da aldeia ao relembrar a cultura dos ancestrais, mas deixou claro que fazia concessões à modernidade. Para divulgar a história dos índios e defender seus direitos, tem um blog na internet e se comunica por e-mail e por telefone celular.

"O povo indígena é um povo humano, que tem raiva, alegria, amor e ciúme", disse Daniel, citando sentimentos que acompanham seus personagens. Ao descrever as aventuras de seus parentes - com namoros, casamentos, caçadas, guerras e alianças de paz - ele utiliza palavras atuais, como garoto, rapaz e moça. Tudo com poesia e figuras simbólicas, mas sem aquela linguagem tipo "virgem dos lábios de mel" com que José de Alencar se referia a Iracema.

Derpó Munduruku, que hoje se orgulha desse nome, mesmo atendendo pelo registro civil que o rebatizou como Daniel, confessa que já sentiu vergonha de suas origens, quando era discriminado por causa da imagem que o índio tinha. "Além de considerar que o índio era preguiçoso e feio, diziam que ele atrapalha o progresso, pois tem muita terra e não sabe o que fazer com ela."

Daniel queria ser bombeiro ou astronauta, não queria ser visto como um selvagem. "Agora, tenho consciência de minha identidade e gosto dela: sou um brasileiro-índio." E, quando ele lembrou que existem brasileiros brancos, negros, japoneses, italianos e cidadãos de muitas outras ascendências que nem por isso são menos brasileiros, todos entenderam.

"Xibat?", perguntou o índio. "Xibat", respondeu a criançada em coro

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