quinta-feira, 23 de setembro de 2010


Uma carta para refletir


Em janeiro de 2008, escrevi pela primeira vez sobre minha queridíssima sobrinha Ana, minha terceira "filha" que, com especialização em educação indígena, aos 23 anos, mudou-se para Roraima para trabalhar com os Yanomami. Dividiria seu tempo entre Boa Vista e a floresta, onde viveu e vive as mais ricas experiências.
Nesta semana, recebi uma carta sua e, emocionada, vou reparti-la com vocês. Não é uma carta qualquer, pois, na simplicidade de suas palavras, encontrei uma verdadeira lição de vida, de dedicação, amor e desapego. Leiam devagarzinho, com atenção, pois ela merece ser lida com a alma.

"Querida família,
Hoje está fazendo três anos que cheguei aqui. Em uma tarde fria de 28 de agosto, peguei o avião de BH para o Norte e cheguei a Boa Vista com o coração apertado e um certo medo de não saber o que me esperava, sem saber viver fora de um ambiente protegido e rodeado por gente querida. Apesar de já ter morado na Itália e na Nova Zelândia, encontrei muito apoio por lá.

Hoje, depois de ter passado muito aperto, ter aprendido muita coisa sozinha, ter os momentos de choro, de solidão e de belas surpresas, sigo tranquila, sem a ansiedade que me acompanhou por tantos anos. É como se eu tivesse encontrado mesmo meu lugar. Estou feliz fazendo o que eu faço! Encontrei aqui também a pessoa que amo e que escolhi para compartilhar a vida, como a vovó tinha previsto.

Agora, moro na beira do rio Branco, em uma casinha muito legal. Aprendi a me comunicar bem em duas línguas Yanomami, tomar atitudes com mais segurança, cozinhar no fogão e na fogueira, tirar bicho de pé, estou conhecendo o universo riquíssimo Yanomami -que, muitas vezes, é desconhecido e desvalorizado, aprendi a usar a máquina de lavar roupas e a lavar roupa no rio, comprar peixe, ouvir mais as pessoas, dormir na rede por mais de um mês, ficar sem comunicação sem me desesperar, me virar quando só tenho eu mesma para cuidar de mim. 

Aprendi a andar um pouco de wind surf no rio, a dividir os espaços, a ver que a minha opinião nem sempre é a certa e que as minhas vontades não são as maiores prioridades no mundo. Estou sempre aprendendo que existem muitos mal-entendidos entre índios e brancos, aprendi a dar aulas para índios, aprendi que, se não tem carne, as pessoas se viram para tirar proteínas de onde for, aprendi que os Yanomami têm um conhecimento etnobotânico e zoológico riquíssimo. Aprendi que trabalhar de verdade e com carteira assinada é dureza! (e nada de escapar para a praia!), aprendi que existe muito mais gente malandra do que imaginava, aprendi a ter um pouco mais de autoconfiança e que, às vezes, não podemos confiar nas pessoas tanto assim. Aprendo sempre que os índios têm muito a nos ensinar e precisamos escutá-los com cuidado. 

Aprendi que miçangas da República Checa são bonitas e podem ser trocadas por macaxeiras, caranguejos e deliciosos cogumelos na floresta, aprendi que não conhecemos a diversidade que existe dentro do nosso Brasil, aprendi que tem pouquíssimo interesse geral em preservar as florestas, aprendi que a casa não fica limpa sozinha e que não precisamos ser tão neuróticos com os germes que existem, que os bichinhos da floresta têm uma carne gostosa e que, às vezes, pode ser estranho comer animais criados. 
Aprendi que dá para viver bem sem carro e que na vida tem muitas coisas mais importantes do que ter um armário cheio e a programação do cinema em dia. 
Aprendi a fazer pão de quijo estando fora de Minas, aprendi que Roraima tem muito político sujo e paisagens lindas. Desaprendi a ter medo de andar à noite sozinha, aprendi a lidar com a saudade do cinema e dos shows, aprendi que é preciso lembrar de trancar a casa antes de dormir, que é preciso viver com delicadeza e cuidado, que é preciso cuidar de mim e das relações.

Ainda não aprendi a viver sem saudade da família, dos amigos, dos lugares e das pessoas que me fizeram ser quem eu sou, que sabem me ouvir e com quem precisamos apenas de meias palavras para nos fazer entender.
Cheguei aqui com 23 anos; hoje tenho 26. 

Meu cabelo está maior, alguns fios brancos precoces, o corpo mais magro e mais sardas no nariz por culpa do sol escaldante. Sinto que tenho um corpo e uma mente mais firmes para segurar os trancos e os "esfrias e esquentas" que é a vida.

Hoje, eu não aprendi, mas apenas sinto que estou feliz depois de tanta maré brava... Mas ainda tem muitas outras para enfrentar!
Ui, chega de devaneios neste sábado vagaroso de chuva...
kua hikia!
Beijos,
Ana".


PS.: A quem interessar, escrevi duas crônicas sobre a experiência de minha sobrinha Ana entre os Yanomami que podem ser encontradas no site: www.otempo.com.br. Do lado direito da tela, localizar o item "colunas" - Laura Medioli. Ao fim da crônica que aparecerá no visor, localizar o item "outras edições". Datas de publicação: 8 de janeiro de 2008 (Ana) e 15 de setembro de 2009 (Onde a felicidade se encontra).

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Xipat Oboré (Tudo de Bom!)
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Daniel Munduruku
www.danielmunduruku.com.br
www.danielmunduruku.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

ÍNDIOS

Índios
Não posso ser como você
nem você como eu
não temos que ser iguais
sabemos que
precisamos de algo muito instintivo.
o amor , sem ele secamos , definhamos ...
é por isso que te respeito ,
me fascina tua pureza ....descontaminação
tua irrefutável prova de retribuição
a quem te acolhe , tua mãe natureza
quando anda pela beleza
aprende com a contemplação
tuas mãos respeitam a criação
é sábio , porque ouve tua própria voz
vê lições em cada folha , em cada caule em cada galho ...

Valéria Garcia