Com placas no pescoço, ianomâmis vacinados estão marcados para viver, diferentemente da família da artista, destruída pela guerra
Walter Sebastião - EM Cultura
Em 1944, na Hungria, a menina de 13 anos viu o pai e os colegas de escola, marcados com a estrela de Davi, serem levados para o campo de concentração. Sem ter como interferir, ela experimentou a impotência – sentimento de que ela se lembra com angústia. Em 1980, a fotógrafa de 49 anos se embrenhou pela Amazônia com dois médicos para organizar projeto de saúde para os ianomâmis. Desde o início dos anos 1970, aquela comunidade sofria de várias doenças devido ao contato com não índios. Naquela missão de socorro, cabia à moça fazer fotos para fichas médicas, com números mostrando quem já fora vacinado. Veja mais fotos de Claudia Andujar As duas lembranças – dos marcados para morrer e dos marcados para viver – estão lado a lado no texto que a fotógrafa Cláudia Andujar, de 78 anos, escreveu para apresentar seu novo livro, que traz as imagens dos índios vacinados. Registros médicos foram transformados em retratos e portraits, buscando restituir a humanidade dos focalizados. “Vendo, revendo e avaliando as fotos dos ianomâmis, encontrei pessoas muito individualizadas. Então, resolvi mudar o formato, fazer a exposição e o livro. Não se trata de dizer se a experiência foi boa ou não, são as pessoas que devem julgá-la”, observa a autora de Marcados (Editora Cosac & Naify). Claudia Andujar avisa: não se trata de fotografia documental. “É um pouco pretensioso dizer isso, mas elas refletem a minha visão do mundo. Além de ajudar aquelas pessoas e populações, eu queria troca pessoal, dar e receber. Só por esse trabalho com os ianomâmis sinto que valeu a pena viver”, afirma. A fotógrafa se sente privilegiada por ajudar os índios brasileiros. “Tentei pelo menos”, frisa Claudia, sem a certeza de ter alcançado o objetivo. A defesa das populações indígenas é tema complicado por envolver questões políticas e econômicas, pondera. A fotógrafa fez da causa dos índios sua “razão de vida”. Ela ajudou a criar e coordenou, por duas décadas, a comissão em favor da criação do Parque Ianomâmi. Em seu acervo de 100 mil imagens, muitas ainda inéditas, 60% são dedicadas a essa etnia. “A situação daquele povo mudou. Mas os não índios continuam querendo ocupar as terras indígenas”, lamenta. Atualmente, os ianomâmis são mais conscientes, sabem ler e escrever, discutem a situação em que se encontram, desejam superar os problemas. “Aprenderam muito com o sofimento”, observa Claudia. A fotógrafa conheceu os ianomâmis em 1965. Aquela população isolada era formada por “índios lindos e saudáveis”, relembra ela. Na época, a questão indígena era tabu, pois o governo militar seguia a doutrina de ocupar as áreas “vazias” do país. O “Brasil que vai pra frente” não se incomodava em dizimar tribos para levar o “desenvolvimento” à Amazônia. Naqueles anos de ditadura militar, Claudia batalhou para emplacar a foto da indiazinha na capa da revista Realidade. E conseguiu. “Seguindo a minha inclinação, eles me pautavam para temas complicados”, conta ela, que fez reportagens sobre prostituição no porto, pistoleiros no Nordeste e sobre o médium José Arigó. Certa vez, a revista foi recolhida das bancas por trazer a imagem de uma criança nascendo, parte da matéria sobre o trabalho das parteiras. “Sou do tempo em que não se fotografavam essas coisas”, ironiza Claudia. Depois de tantos anos de experiência, a fotógrafa constata: “Chega-se a um momento da vida em que você percebe a importância e a não importância das coisas. Digere-se o vivido com distanciamento”. Rememorar os dramas retratados pelas fotos faz parte do ofício. “Difícil é não ter dinheiro para digitalizar o acervo”, observa. Claudia planeja novos trabalhos, como a série sobre o meio ambiente na região amazônica. “Tenta-se fazer acreditar que a questão tem solução, que pode ser contornada. Ao mesmo tempo, ninguém quer abrir mão da exploração destrutiva dos recursos naturais. Vou entrar nessa história”, avisa. Militante? “Sou sim”, responde, com orgulho. E não descarta um livro de memórias. As ideias de Claudia Fotografia – “Comecei a fotografar ao chegar ao Brasil, em 1955. A máquina virou minha companheira. Não gosto de máquinas, nem sou ligada à técnica. Mas precisava dela para transmitir, para dizer o que sentia. Fotografar foi a minha relação com o mundo à volta. Essa atividade permitiu que eu me enxergasse. No fundo, a gente está sempre à procura de si mesma. Minha fotografia pode não ter mudado o mundo, mas mudou o meu mundo.” Família – “Fotografar foi um modo de chegar às pessoas, de me sentir em casa no Brasil. Perdi a família no campo de concentração, fiquei muito tempo sozinha. Como demora para conseguir outra família, usei a fotografia para fazer amigos e entender as situações. Só muitos anos depois vi a associação entre o meu passado, de alguém que perdeu a família, com o que eu fazia. Mas era algo que sempre esteve lá, no inconsciente.” Luz – “Na hora de fotografar, procurava ambientes naturais. Quase não usei flashes. A luz é o caminho entre o sobrenatural e o íntimo das pessoas. Sempre procurei captar o íntimo. Quando veem as fotos do livro, as pessoas reparam os números – o que pode incomodar. Eu vejo o olhar das pessoas que fotografei. O olhar é, realmente, o espelho da alma.” Encanto pelo Brasil • De origem húngara, Claudia Andujar nasceu na Suíça. Filha de pais separados, foi encaminhada por juízes para um internato católico. Menina, assistiu ao bombardeio da cidade em que morava. Os colegas judeus foram levados para Auschwitz. Ela deixou a Europa aos 15 anos e se mudou para a casa de um tio, em Nova York, nos Estados Unidos. Aos 17, já morava sozinha, trabalhava e estudava. Fez curso ligado à área de humanidades, escrevia poemas e pintava. Casou-se e separou-se. • Claudia conheceu o Brasil ao visitar a mãe, que morava em São Paulo. Encantada com o povo comunicativo que a fez se sentir em casa, decidiu ficar no país. Resolveu comprar uma Rolleiflex e começou a fotografar. Dedicou-se, então, a ensaio sobre famílias brasileiras. Fotografou fazendeiros baianos, mineradores de Diamantina, pescadores e gente da classe média paulista. • Admiradora dos artistas Eugem Smith, Rosângela Rennó e Miguel Rio Branco, Claudia Andujar afirma que todos eles resgatam o humanismo. “É gente que põe a alma no que faz”, conclui. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário